sábado, 5 de novembro de 2011

Ícones - encontro de oração


Mais do que qualquer coisa este é um encontro de oração. Um encontro de experiência e aprofundamento de vida de oração. O ícone não é nada mais do que uma oração. É uma oração expressa em cores e formas. E é isto o que distingue o ícone de qualquer outra «obra de arte.»
Assim como é impossível ensinar alguém a rezar simplesmente por palavras, também é impossível ensinar ou aprender a orar com os ícones sem que haja uma experiência. Por isso, nesse encontro, muito mais do que falar dos ícones vamos experimentar esse tipo de oração. É uma oração muito simples, pois os ícones são para os «pobres de coração» (cf.Mt.5,3). Não se reza com os ícones simplesmente com o intelecto, mas com o coração. É uma oração de humildade, onde temos que nos despojar de nossos pré-conceitos e concepções pessoais. Orar com os ícones significa entregar-se e participar daquilo que nele já está proposto. Como disse, o ícone mesmo já é uma oração.
Mas por que o homem tem tanto desejo em aprender a rezar? Mesmo que não seja consciente dessa necessidade, o homem é um ser criado para a oração. Ele foi criado para o convívio com Deus, para participar daquilo que é celeste. Antes de sua queda, o homem vivia em perfeita harmonia com Deus. Quando o pecado entrou no mundo, porém, esta ordem foi quebrada e o homem se afastou de Deus; escondeu-se Dele. Mesmo longe de Deus, o homem continuou a trazer em si as marcas da divindade. Trazia dentro de si a semente original. Quando olhava para o seu interior via os traços de Deus, pois foi criado à sua imagem e semelhança. Porém, esta imagem havia se quebrado com o pecado. O Pai, então, para restabelecer esta relação de união e restaurar esta imagem perdida no homem, envia o seu Filho para reabrir para o homem as portas do paraíso perdido.
Depois do pecado, a oração passou a ser algo contra a natureza humana. Orar, para o homem, não é difícil; diria que é impossível. No entanto, Deus, em sua bondade, concede ao homem esta graça de estar em seu convívio, mesmo sendo indigno. O que o faz digno é a sua filiação, que acontece através de Jesus Cristo. A oração, portanto, não é um ato humano, que depende das capacidades de cada um. A oração é um dom de Deus.
É através da oração que estabelecemos esta relação de amizade e amor com Deus. Sem isso, não podemos viver. Talvez possamos sobreviver, mas não viver de fato. É como se tentássemos criar um peixe fora de seu ambiente natural: a água. O ambiente natural do homem é Deus, é o Céu. Talvez fora desse habitat natural ele possa até sobreviver, mas nunca poderá viver plenamente. Quando estamos longe desse habitat sentimo-nos deslocados. Não sabemos o que fazer, sentimo-nos desamparados e tristes. Diria que este é o grande mal pelo qual o mundo sofre: os homens não estão vivendo em seu habitat natural. O homem sente saudades de Deus.
O Senhor nos proporciona meios de oração. Meios de entrarmos em contato com Ele com maior facilidade: a Escritura (lectio divina), a liturgia (sacramentos), a música, a própria criação, a arte… Tudo o que esta relacionado a Deus mesmo pode nos levar à oração. Em tudo isso percebemos a presença de Deus, pois Ele se manifesta em toda a sua criação.
No relato da criação (Gn 1), vemos que a cada ato de criação, Deus profere uma Palavra: “isto é bom”. Com isso a Escritura quer nos dizer que todas as coisas existem e são sustentadas pela vontade e pela Palavra criadora de Deus. Em toda criação Deus imprimiu a sua Bondade – «e Deus viu que isto era bom».
É interessante perceber que para a Bíblia, enquanto palavra de revelação, Bondade e Beleza são sinônimOs, porque ambas deixam perceber tanto a ação criadora de Jhwh quanto seu fazer-se conhecer como o verdadeiro Deus. Deus imprime em toda a criação o seu caráter de bondade e de beleza.
O ser humano não poderia ser isento desta marca de Deus. E Deus vai além desta simples marca e cria o homem à sua «imagem e semelhança» e vê que o que fez «é muito bom-belo.» O homem não é uma cópia de Deus, nem muito menos tem os traços físicos de Deus, pois isto seria impossível, visto que Deus é espírito. Mas ele é semelhante a Deus na faculdade de poder decidir e amar.
É isto o que faz do homem um ser superir a toda a criação; Deus submete a criação ao poder do homem. É ele quem dá o nome a cada ser criado. O homem é, portanto, partícipe da criação. E é colaborador de Deus também enquanto capaz de gerar vida. O homem, enquanto criação de Deus, é reflexo de sua glória, vem do conteúdo da beleza de Deus.
O homem participa da criação do mundo a partir do momento em que é criado. Em tudo o que faz, todas as obras de suas mãos devem ser uma expressão da Bondade e da Beleza de Deus. A beleza e a harmonia fascinam o homem, pois fazem com que ele se lembre e tenha saudades de Deus, mesmo inconscientemente.
A iconografia está inserida dentro desta realidade da teofania da Beleza de Deus. Por isso constitui uma porta aberta à oração, ao encontro com o transcendente.
Não admiramos o ícone simplesmente por ser uma obra de arte. O ícone não quer nos transmitir o estético, mas a BELEZA mesma, que tem sua origem no próprio Deus. O ícone, portanto, é um reflexo do mundo celeste; uma janela para o invisível.

Mas, o que é o ícone?

A imagem sacra, o ícone litúrgico, representa principalmente o Cristo. Ela não representa o Deus invisível e incompreensível; é a encarnação do Filho de Deus que inaugurou uma nova «economia» das imagens:
Antigamente Deus, que não tem nem corpo nem aparência, não podia em absoluto ser representado por uma imagem. Mas agora que se mostrou na carne e viveu com os homens posso fazer uma imagem daquilo que vi de Deus.
(…) Com o rosto descoberto, contemplamos a glória do Senhor. (S.J.Damasceno) (Catecismo da Igreja Católica 1159)
A iconografia cristã transcreve pela imagem a mensagem evangélica que a Sagrada. Escritura transmite pela palavra. Imagem e palavra iluminam-se mutuamente. A iconografia é uma sucinta profissão de fé, que concorda com a pregação da história evangélica, crendo que, de verdade e não na aparência, o Verbo de Deus se fez homem. (CIC 1160)
Toda a iconografia é referente ao Cristo, inclusive quando se trata da Virgem Mãe de Deus e dos santos. Significam o Cristo que é glorificado neles. Por meio de seus ícones, revela-se à nossa fé o homem criado «à imagem de Deus» (cf. Rm 8,29; IJo 3,2) e transfigurado «à sua semelhança», assim como os anjos, também recapitulamos em Cristo. (CIC 1161)
O culto cristão das imagens não é contrário ao primeiro mandamento, que proíbe os ídolos. De fato, «a honra prestada a uma imagem se dirige ao modelo original» (S.Basílio), e «quem venera uma imagem venera a pessoa que nela está pintada» (Conc. de Nicéia; Trento; Vaticano II). A honra prestada às santas imagens é uma «veneração respeitosa», e não adoração, que só compete a Deus. (CIC 2132)
«A beleza e a cor das imagens estimulam minha oração. É uma festa para os meus olhos, tanto quanto o espetáculo do campo estimula meu coração a dar glória a Deus» (S.J.Damasceno). A contemplação dos ícones santos, associada à meditação da Palavra de Deus e ao canto dos hinos litúrgicos, entra na harmonia dos sinais da celebração para que o mistério celebrado se grave na memória do coração e se exprima em seguida na vida dos fiéis.(CIC 1162)

A teologia da Presença

Um manuscrito do Monte Athos insiste sobre «a oração com as lagrimas, para que Deus penetre na alma» do iconógrafo (pintor/ou escritor de ícones), e aconselha «o temor de Deus, pois é uma arte divina, transmitida à nós por Deus mesmo», e ainda mais: «Tu que admiravelmente inspiraste o evangelista Lucas, iluminai a alma de teu servo, conduzi sua mão para que ele execute perfeitamente Teus traços misteriosos…» (Dom J. Dirks, Les Saint Icônes, p.44).
Segundo uma antiga tradição, S. Lucas foi ao mesmo tempo evangelista e primeiro iconógrafo. Suas duas inspirações, seus dois carismas inspirados por Deus na mesma medida, estavam a serviço da única verdade evangélica. Nas matinas da festa de Nossa Senhora de Vladimir, o primeiro canto do Cânon proclama: «fazendo teu venerável ícone, o divino Lucas, escritor do Evangelho de Cristo, inspirado pela voz divina, representa o Criador de todas as coisas nos teus braços.» Do mesmo modo, A vida de São João Evangelista exorta: «para aprender a iconografia e compreender o ícone, orai São João…» Assim, a inspiração dos evangelistas e a dos iconógrafos, sem ser iguais, são semelhantes quanto ao nível da revelação do Mistério. Dirigindo-se à Theotokos (Mãe de Deus), Denys lhe diz: «eu desejo que a tua imagem se reflita sem cessar no espelho das almas e as conservem puras; que ela levante aqueles que estão curvados e que ela dê esperança àqueles que consideram e imitam este eterno modelo de beleza.»
Para o Oriente, o ícone é um dos sacramentais, mais precisamente da presença pessoal. Nas Vésperas da Festa de Nossa Senhora de Vladimir sublinha-se: «contemplando o ícone, tu dizes com poder: minha graça e minha força estão com esta imagem.» É por isso que é necessário que o ícone seja abençoado por um padre, para que se lhe confira o caráter teofânico. O ícone estará cheio de presença, será uma testemunha autêntica e o «canal da graça à virtude santificadora» (São João Damasceno). O Concílio de 860 afirma a mesma coisa: «O que o Evangelho nos diz através da palavra, o ícone nos anuncia através das cores e o torna presente para nós.»
Quando o ícone nos apresenta um santo, testemunha a sua presença e exprime seu mistério de intercessão e de comunhão conosco e com toda a Igreja.
Certamente o ícone não tem realidade própria; em si, ele é somente uma prancha de madeira; é justamente porque ele tira todo seu valor teofânico de sua participação na Trindade, no «todo outro» por meio da semelhança, que ele não pode encerrar nada nele mesmo, mas irradia como que por irradiação esta presença. A ausência de volume exclui toda materialização, o ícone traduz uma presença energética que não pode ser localizada nem guardada, mas que irradia ao redor de seu ponto de condensação.
É esta teologia litúrgica da presença, que distingue absolutamente um ícone de um quadro religioso qualquer e faz a linha de demarcação entre os dois. Podemos dizer que toda obra puramente estética se realiza em um tríptico, onde o artista, a obra e o espectador formam as três portas ou partes. O artista procura, sobretudo expor seu dom e suscitar uma emoção de admiração na alma do espectador. O conjunto está contido neste triângulo de imanetismo estético. E mesmo se a emoção passa ao sentimento religioso, isso não é mais do que a capacidade subjetiva do espectador de a experimentar.
Uma obra de arte é para se olhar, ela encanta a alma; emocionante e admirável ao máximo, ela não tem função litúrgica. Ora, a arte sacra do ícone transcende o plano emotivo que é agitado pela sensibilidade. Uma certa aridez hierática desejada e o despojamento ascético da alma da obra se opõem a tudo isso que é suave e emoliente, a todo enfeite e gozo propriamente artísticos.
É por esta função litúrgica que o ícone quebra o triângulo estético e seu imanetismo; ele suscita não a emoção, mas o senso místico, o mysterium tremendum, diante a vinda de um quarto princípio em relação ao triângulo: a parusia do Transcendente de que o ícone atesta a presença. O artista se apaga atrás da Tradição que fala, os ícones não são quase nunca sinais; a obra de arte dá lugar a uma teofania; todo expectador à procura de um espetáculo se encontra aqui deslocado; o homem, tomado por uma revelação fulgurante, se prostra em um ato de adoração e de oração.
Ao contrario, no Ocidente, a respeito das imagens, o Concílio de Trento acentua a anamnese, a lembrança, mas não absolutamente epifânico, se colocando assim fora da perspectiva sacramental da presença. Ele afirmou todos os dogmas católicos, mas diante da Reforma, forçosamente iconoclasta, ele rejeitou o dogma iconográfico, aliás, abandonado pelo Ocidente desde o VII Concílio. Ora, essa perspectiva sacramental da presença é sintomática. Quando Bernadete foi convidada a escolher em um álbum a imagem que mais se assemelhava à sua visão, ela se deteve sem hesitar em um ícone bizantino da Virgem, pintado no séc. XI…
A primazia do acontecimento teofânico descentraliza toda composição iconográfica do contexto histórico imediato, guarda estritamente o necessário para reconhecer um acontecimento ou a visão de um santo através de seus traços desenhados pelo celeste. A visão é natural sem ser naturalista. Isso porque é impossível um ícone de um homem vivo e toda busca por uma semelhança carnal é excluída. A visão de um iconógrafo passa por uma ascese, pelo “jejum dos olhos” (S. Doroteu) a fim de coincidir com a da Igreja. Forma poderosa de pregação e expressão dos dogmas, o ícone é submisso às regras transcendentais da visão eclesial.

O Ícone e a Liturgia

As formas arquiteturais de um templo, os afrescos, ícones, objetos de culto, não estão simplesmente reunidos como objetos de um museu, mas, como os membros de um corpo, eles vivem de uma mesma vida de mistério, eles estão integrados ao mistério litúrgico. Isso é fundamental e nós não podemos entender um ícone fora desta integração. Na casa dos fiéis, o ícone é colocado em um lugar alto e de destaque na sala: ele guia o olhar para o alto, para o Altíssimo e para o único necessário. A contemplação orante atravessa, por assim dizer, o ícone e não se detém ao conteúdo vivo que ele traduz. Em sua função litúrgica, simbiose do senso e da presença, ele santifica os tempos e os lugares; de uma simples casa ele faz uma «igreja doméstica», da vida de um fiel, uma vida orante, liturgia interior e contínua. Ponto de contemplação, jamais de decoração, o ícone centra toda a casa sob a influência do céu.
Da mesma forma, todos aqueles que atravessam a soleira de um templo ortodoxo são tomados por uma forte sensação de vida incessante, de eternidade. Mesmo fora dos ofícios litúrgicos, tudo remete aos santos mistérios, tudo é animado e tende para Aquele que vem para se dar em comida.
Nos ofícios, os textos litúrgicos se harmonizam com o evento celebrado e o comentam; o mistério litúrgico o faz «presente» e transmite este conteúdo vivo ao ícone da festa. E tudo ao redor, o ícone faz ver, na liturgia mesmo, uma função iconográfica, uma representação e imagem de toda a economia da salvação. No canto do Chérubikon: «Nós, que misteriosamente representamos os querubins e que cantamos à vivificante Trindade o hino três vezes santo», ultrapassamos o terrestre e participamos «misteriosamente» da liturgia eterna celebrada pelo Cristo mesmo no céu. O ícone da «sinaxe», mostra a assembléia dos anjos, seus inumeráveis olhos e suas miríades de asas ruidosas; sobre o ícone da «liturgia eterna», eles cercam o Cristo, Grande Sacerdote oficiante, para «que o Evangelho da glória do Cristo, ícone de Deus, brilhe aos olhos dos crentes» (Dom J. Dirks, Les saintes icônes, p. 44.). Os fiéis «representam misteriosamente» os anjos, são os ícones vivos, as «angelofanias», lugar humano do mistério angélico de adoração e de oração. Hic et nunc, tudo é participação, oferta, presença e eucaristia: «isto que é teu, nós te oferecemos» e «te rendemos graças». Nesta sinfonia grandiosa, todo fiel olhando os ícones vê seus irmãos mais velhos, patriarcas, apóstolos, mártires, santos, como seres bem presentes, é com eles todos que ele participa do Mistério; ao lado dos anjos, ele canta: «Em Teus santos ícones, nós contemplamos os tabernáculos celestes e exultamos em uma alegria puríssima…»

BIBLIOGRAFIA:
EVDOKIMOV, Paul – L’art de l´icône-Théologie de la beauté – Desclée de Brouwer/1972;
Catecismo da Igreja Católica;
Dicionário de Espiritualidade – Ed. Paulinas/1989;
Dicionário de Teologia Fundamental – Ed. Santuário – Ed.Vozes/1994;
FONTE:

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